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"Um tempo chamado Yayá": muito além de uma peça de teatro.

  • Foto do escritor: Lara Meloni
    Lara Meloni
  • 25 de nov. de 2024
  • 3 min de leitura


Esta peça não é para qualquer pessoa, é para aqueles que tem a coragem de olhar para a vida e ver as suas mazelas. Não enxergar, ver. Não só ver, sentir.


São poucos os que se arriscam a se debruçar neste abismo que aponta para a crueldade visceral humana.


Visceral, cirúrgico, seriam estes os adjetivos apropriados para nomear uma peça que disseca a realidade que é uma internação forçada, uma segregação social e uma imposição de loucura?


Você sente, você vive.

Naquele chão frio, nas paredes gélidas enfeitadas, no cheiro pútrido do tempo.


Uma peça que não é peça por si só pois ao invés de um palco é uma casa, feita de cômodos, feita de histórias.


Uma peça que não é peça porque faz com o que o telespectador não seja só um observados mas encare a difícil tarefa de ser uma testemunha viva e contundente de uma história que muitos queriam apagar.


Uma peça que não te faz viver a dor de 40 anos de sofrimento e solidão, de jantares insalubres, de ausências esquecidas, de monotonias mortíferas, de um sol gelado, de janelas embaçadas que nunca deixavam ver o jardim florido.


Você sente a vida se escapando em cada suspiro, a maldade se impregnando, o poder dilacerando.


Você sente como se fosse na sua pele (porque também é) essas marcas de feridas que nunca cicatrizam. Se você não se vê, você vê outro alguém e a empatia faz com que você se desmonte diante da impotência do abraço.


Esta peça é um abismo, é uma circuambulação de histórias que se desdobram em sete e em tantas outras. Passado e presente se unificam, vida e morte se unem.


O tempo não passa.


O contraste das cenas que se passam simultaneamente revelam a incerteza da vida.

A vida prodigiosa da escola se desvanece como fumaça no vapor da água fervente de banhos receitados. A viagem pra Europa é ínfima diante da volta de uma internação em um manicômio.


Dizem que de louco todo mundo tem um pouco e a nossa parte louca se toca, se dói, se treme de medo, porque sabemos que no fundo, poderíamos ser nós mesmos os protagonistas desta história.


Nos dói mais ainda pensar que estes encontros que a protagonista faz consigo mesma, com tantas versões, só demonstra que ela só queria algo que em algum momento passou em nossa cabeça: viver.


Os encontros desencontrados e desconexos apontam para o emaranhado de fios da vida que se embola, se estira e se estrangula.


Um tempo chamado Yayá se aproveita da lenda de que correntes e gritos são ouvidos naquela casa para denunciar a transformação de Yayá em fantasma, quando ainda estava viva, acorrentada pela estigmatização, desenganada pela vida, uma morta viva.


Você não sente medo do barulho que ouve lá por pensar que ele surge de um espírito, porque não é a morte dela que assusta, é a forma como viveu.


Esta não é só uma peça porque não se limita apenas a contar uma história. Ela transborda em tantas outras narrativas de mulheres que foram internadas por serem mulheres, por se destacarem em uma sociedade retrógrada, por serem independentes, solteiras, por serem quem elas eram.


Por serem assim foram lobotomizadas e levadas à existência do nada.


Elas não eram loucas, elas ficaram loucas.


Patrícia Teixeira e o elenco da Companhia Coexistir de Teatro (Alana Carvalho, Gabriela Pietro, Gislaine Mendes, Janaína Reis, Lia Xavier, Sandra Crobelatti, Silvia Fuller e Wash Peinado) demonstram uma enorme habilidade para escancarar a realidade e ao mesmo tempo sensibilidade para acolher e derramar um tema tão forte.


Ao final, a camisa de força é retirada e nos é oferecido a esperança de que o Sol finalmente brilhou para Sebastiana de Mello Freire, a Yayá. Ela se libertou.


As vozes compartilhadas entre as mulheres e a história ali contada nos convidam a ampliar nosso olhar, a expandir nossa visão para além do racional. Ali sentimos a alma de Yayá e de tantas outras que sofreram.


É por isso que essa não é apenas uma peça, é um ato de resistência e de coragem que nos convida para a ação, a ação de não permitir que tal reducionismo aconteça, ação de acolher, ação de cuidar e sobretudo de agir como gente humana.

 
 
 

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© 2024 por Lara Meloni

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